Georg Lukács e a Teoria Marxista da Realidade Social
Ontologia do Ser Social, publicado postumamente em 1984, é uma das últimas e mais ambiciosas obras de Georg Lukács, filósofo marxista húngaro que buscou reinterpretar e expandir a teoria marxista a partir de uma reflexão sobre a ontologia — ou seja, sobre a natureza do ser e da realidade. Lukács pretende, nessa obra, desenvolver uma ontologia da sociedade com base nos princípios do materialismo histórico de Karl Marx, explorando como a realidade social é estruturada, como os indivíduos se relacionam com o mundo ao seu redor e como o capitalismo molda as formas de ser e de agir das pessoas.
Lukács se propõe a criar uma ontologia especificamente focada nas formas de existência que emergem das relações sociais de produção e da atividade prática dos seres humanos. Para ele, a essência do ser humano está intrinsecamente ligada à prática social e ao trabalho, e é essa prática que dá forma à realidade social. Ao longo do livro, ele busca responder a perguntas fundamentais sobre o que significa existir em uma sociedade capitalista e como as formas de alienação e fetichismo moldam a existência humana.
1. A Ontologia Marxista do Ser Social
Para Lukács, o ponto de partida de qualquer ontologia marxista deve ser a atividade prática dos seres humanos — o trabalho. Ele afirma que a prática social é a base da realidade social e que o ser humano só pode ser compreendido adequadamente em sua relação com o mundo e com os outros através do trabalho e da produção material. Nesse sentido, a ontologia do ser social, segundo Lukács, é fundamentalmente diferente das ontologias tradicionais, que se concentram na existência abstrata e metafísica do ser.
Lukács enfatiza que o ser humano é um ser social, que se constitui nas e pelas suas relações com outros seres humanos dentro de um sistema de produção. O trabalho, para ele, não é apenas uma atividade econômica, mas a forma como os indivíduos transformam a natureza e a si mesmos. O trabalho cria as bases da sociedade, das relações sociais e das instituições. Através do trabalho, os seres humanos se afirmam como seres históricos, cuja existência é moldada pela prática social concreta.
Lukács também rejeita qualquer abordagem determinista do marxismo. Ele argumenta que a história e a sociedade não são determinadas mecanicamente por leis econômicas ou materiais, mas são resultado da atividade prática dos seres humanos, que transformam a sociedade através de suas ações conscientes e coletivas.
2. Alienação e Reificação
Um dos conceitos centrais em Ontologia do Ser Social é o de alienação, que Lukács desenvolve a partir da obra de Marx. Alienação, para Lukács, ocorre quando os seres humanos perdem o controle sobre os produtos de seu trabalho e sobre suas próprias relações sociais. No capitalismo, o trabalho e os produtos do trabalho se tornam mercadorias que existem separadamente dos trabalhadores, e essa separação gera uma forma de alienação profunda, onde os indivíduos se veem alienados do processo produtivo, dos outros e de si mesmos.
Lukács amplia esse conceito de alienação para incluir a ideia de reificação, que ele já havia explorado em História e Consciência de Classe (1923). Reificação é o processo pelo qual as relações sociais, que são criadas pelos seres humanos, passam a ser percebidas como coisas independentes e objetivas. No capitalismo, as relações de produção e as mercadorias adquirem uma espécie de vida própria, parecendo existir independentemente dos indivíduos que as produzem. Esse processo mascara a realidade social, ocultando a origem humana das estruturas sociais e econômicas.
A reificação, para Lukács, é uma forma de alienação que permeia toda a sociedade capitalista, afetando tanto o trabalho quanto a consciência das pessoas. As relações sociais são fetichizadas — ou seja, vistas como naturais e imutáveis — e os indivíduos perdem a capacidade de compreender a verdadeira natureza dessas relações e de agir coletivamente para transformá-las.
3. A Categoria do Trabalho como Fundamento da Ontologia
Lukács faz uma análise detalhada do conceito de trabalho, que ele considera a base da ontologia do ser social. Ele argumenta que o trabalho é a atividade central que define o ser humano e sua existência social. Ao trabalhar, os seres humanos não apenas transformam a natureza, mas também transformam a si mesmos e criam a base de suas relações sociais. O trabalho, para Lukács, é uma atividade teleológica — isto é, guiada por um propósito — e essa capacidade de agir com um fim em mente é o que distingue o ser humano dos outros seres vivos.
Lukács também enfatiza a historicidade do trabalho, ou seja, a ideia de que as formas de trabalho e de organização social mudam ao longo da história. O capitalismo, para ele, representa uma forma específica de organização do trabalho, onde a produção de mercadorias se torna o objetivo central da atividade econômica e social. Essa forma de organização, segundo Lukács, gera profundas contradições, especialmente a alienação e a reificação, que são características centrais do capitalismo.
No entanto, Lukács acredita que o trabalho também contém a possibilidade de superação da alienação. Através do trabalho coletivo e da organização política, os seres humanos podem recuperar o controle sobre suas vidas e transformar as condições sociais que os oprimem. Assim, a ontologia do ser social é uma ontologia dialética, onde a contradição entre alienação e emancipação está no centro da existência social.
4. A Dialética da Sociedade e da Consciência
Outro aspecto importante de Ontologia do Ser Social é a relação dialética entre sociedade e consciência. Lukács argumenta que a consciência humana não pode ser separada da prática social, pois é através da atividade prática que os indivíduos adquirem consciência de si mesmos e do mundo ao seu redor. A consciência, para Lukács, é um produto da interação entre os seres humanos e suas condições materiais de existência.
No entanto, a sociedade capitalista, ao alienar os indivíduos de seu trabalho e de suas relações sociais, também aliena sua consciência. A reificação afeta não apenas o trabalho, mas também a forma como as pessoas percebem o mundo. Elas se tornam incapazes de ver as estruturas sociais como produtos de sua própria atividade e, em vez disso, as aceitam como fatos naturais e imutáveis.
Lukács argumenta que a superação da alienação requer não apenas a transformação das condições materiais de existência, mas também uma mudança na consciência dos indivíduos. A prática revolucionária, para ele, é uma prática consciente, onde os indivíduos se organizam coletivamente para transformar a sociedade e recuperar o controle sobre suas vidas e seu trabalho.
5. Emancipação e a Possibilidade de uma Sociedade Livre
Embora Ontologia do Ser Social seja uma obra crítica da sociedade capitalista e de suas formas de alienação, Lukács também oferece uma visão positiva da emancipação humana. Ele acredita que a história não é um processo determinado por leis econômicas ou materiais, mas é moldada pela prática consciente dos seres humanos. Assim, a emancipação é possível através da ação política e da luta de classes.
Lukács vê no socialismo a possibilidade de uma sociedade onde os indivíduos possam recuperar o controle sobre suas vidas e superar a alienação. No socialismo, o trabalho não seria mais uma mercadoria alienada, mas uma atividade criativa e coletiva, onde os seres humanos poderiam realizar plenamente suas capacidades. A superação da reificação e da alienação, segundo Lukács, é a chave para a emancipação humana e para a criação de uma sociedade verdadeiramente livre.
Conclusão
Ontologia do Ser Social é uma obra fundamental para o pensamento marxista e oferece uma análise profunda das bases ontológicas da sociedade capitalista. Georg Lukács desenvolve uma ontologia dialética do ser social, onde o trabalho e a prática social são centrais para a compreensão da existência humana. Ele explora os conceitos de alienação, reificação e consciência, oferecendo uma crítica radical do capitalismo e das formas de dominação que ele gera.
Ao mesmo tempo, Lukács oferece uma visão otimista da possibilidade de emancipação através da prática política consciente. A ontologia do ser social, para ele, é uma ontologia da transformação, onde a história é moldada pela ação coletiva dos seres humanos. A obra permanece relevante para os debates sobre a natureza do capitalismo, a alienação e a possibilidade de uma sociedade emancipada.
Obras Relacionadas:
- História e Consciência de Classe, de Georg Lukács – Um estudo clássico que desenvolve a crítica à reificação e à alienação nas sociedades capitalistas.
- O Capital, de Karl Marx – A principal obra de Marx, que serve de base para a análise de Lukács sobre o trabalho, a mercadoria e a alienação.
- Para uma Ontologia do Socialismo, de György Márkus – Um estudo que explora a ontologia do socialismo e da emancipação humana, em diálogo com as ideias de Lukács.
- Marxismo e Filosofia, de Karl Korsch – Um texto que investiga as relações entre a teoria marxista e a filosofia, discutindo questões ontológicas e dialéticas.
- Ser e Tempo, de Martin Heidegger – Uma obra filosófica que, embora não marxista, oferece uma análise ontológica do ser que dialoga com algumas das preocupações de Lukács.