O Desentendimento (1995)

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Jacques Rancière e a Teoria do Conflito Político e do Desentendimento

O Desentendimento: Política e Filosofia (La Mésentente: Politique et Philosophie), publicado em 1995 pelo filósofo francês Jacques Rancière, é uma obra central em sua reflexão sobre política e democracia. O livro explora a ideia de que o conflito e a dissensão são constitutivos da política, em oposição às visões tradicionais que tratam a política como a busca de consensos e acordos. Para Rancière, a verdadeira política não se baseia na harmonia ou na reconciliação, mas na interrupção das ordens estabelecidas de poder e nas disputas que emergem quando aqueles que são excluídos do discurso político reivindicam sua voz.

A obra é uma crítica às concepções tradicionais de política, que tendem a ver a política como uma administração de diferenças ou como uma gestão de interesses em busca de consenso. Rancière propõe, ao contrário, que a política é, essencialmente, o momento em que os excluídos da ordem social estabelecida — aqueles sem parte no “partilhar do sensível” — emergem para desafiar essa ordem e demandar reconhecimento. A política, para ele, é o espaço da dissensão, do desentendimento, onde o que está em jogo não é apenas uma disputa de interesses, mas uma disputa sobre a própria definição de quem conta como sujeito político.

1. Política como Desentendimento: A Centralidade do Conflito

Um dos pontos centrais de O Desentendimento é a crítica de Rancière à concepção de política como consenso. Ele argumenta que, ao contrário das ideias tradicionais que associam a política com a busca de harmonia social, a verdadeira política emerge do conflito e da dissidência. Para ele, a política é o processo pelo qual aqueles que são considerados “sem parte” — aqueles que são excluídos ou marginalizados no espaço público — se levantam para reclamar seu lugar.

Rancière faz uma distinção entre “polícia” e “política”. A “polícia”, segundo ele, não se refere às forças de segurança, mas a uma lógica de organização que distribui as posições sociais e define o que é visível, audível e dizível. A “política”, por outro lado, é o ato de interromper essa lógica, de introduzir o desentendimento — um conflito que desafia a ordem estabelecida e a forma como as identidades e os lugares são distribuídos.

O desentendimento, nesse sentido, não é meramente uma divergência de opiniões dentro de um campo consensual. Ele é uma ruptura fundamental, um desacordo sobre as próprias regras do jogo político. É o momento em que aqueles que não têm uma voz reconhecida dentro do sistema existente se levantam para afirmar sua igualdade e sua capacidade de falar e agir politicamente.

2. A Igualdade como Pressuposto da Política

Para Rancière, a política autêntica só pode existir quando a igualdade é afirmada como um pressuposto básico. Ao contrário de visões que veem a igualdade como um objetivo a ser alcançado, Rancière argumenta que a política começa com a afirmação da igualdade. Os indivíduos não precisam esperar que sejam “igualados” pelo sistema; eles podem, desde já, se afirmar como iguais e agir com base nessa igualdade.

A política, portanto, não é uma questão de “conceder” direitos ou reconhecimento aos oprimidos ou excluídos, mas de os próprios excluídos se afirmarem como iguais e exigirem que sua igualdade seja reconhecida. Essa ideia de igualdade pressuposta é uma das bases do pensamento político de Rancière e está diretamente ligada à noção de desentendimento, pois a igualdade afirmada pelos marginalizados muitas vezes entra em choque com as estruturas hierárquicas que governam a sociedade.

Ao colocar a igualdade como ponto de partida, Rancière subverte as concepções tradicionais de política, que muitas vezes tratam a igualdade como algo a ser conquistado ou negociado. Em vez disso, ele propõe que a política é sempre uma luta em torno do reconhecimento da igualdade e da inclusão daqueles que foram sistematicamente excluídos.

3. O Partilhar do Sensível: A Política da Visibilidade e Invisibilidade

Um conceito central no pensamento de Rancière, e desenvolvido em O Desentendimento, é a ideia do partilhar do sensível (“partage du sensible”). Esse termo refere-se à maneira como a sociedade distribui o que pode ser visto, ouvido, dito e pensado. A ordem social — o que ele chama de “polícia” — define quem pode participar do discurso público, quem pode ser visto como sujeito político e quais temas podem ser debatidos.

A política, para Rancière, é o momento em que essa distribuição do sensível é interrompida e reconfigurada. Quando os excluídos ou marginalizados reivindicam sua voz, eles desafiam a própria estrutura que define quem conta como cidadão, quem tem o direito de falar e sobre o que se pode falar. O desentendimento é, portanto, um conflito sobre o partilhar do sensível, sobre as próprias regras que organizam o espaço político e social.

Essa reconfiguração do sensível é uma forma de redistribuir o poder, pois aqueles que foram silenciados ou invisibilizados passam a se tornar sujeitos de suas próprias narrativas. A política, para Rancière, é essencialmente esse processo de reconfiguração, em que novos sujeitos, novas vozes e novas questões emergem para desafiar a ordem estabelecida.

4. A Dissensão e a Democracia

Rancière também faz uma crítica à forma como a democracia tem sido interpretada e praticada nas sociedades contemporâneas. Para ele, a democracia não é um sistema político que pode ser administrado ou gerido, como muitas vezes é entendido em termos liberais. Em vez disso, a democracia é o nome do conflito, da dissensão, da luta constante pela afirmação da igualdade.

A verdadeira democracia, segundo Rancière, não se baseia no consenso, mas na dissensão. É o processo contínuo pelo qual os marginalizados e excluídos se levantam para afirmar seus direitos e sua igualdade. A política democrática é, portanto, um processo aberto e inacabado, marcado por conflitos e desentendimentos sobre quem tem o direito de participar da vida pública e sobre quais questões devem ser debatidas.

Rancière rejeita a ideia de que a democracia seja uma questão de “governança” ou de administração técnica dos interesses da sociedade. Para ele, a democracia autêntica é um campo de disputa, onde os oprimidos afirmam sua igualdade e desafiam as estruturas de poder que tentam excluí-los. Esse processo de dissensão é o que mantém viva a política democrática, e qualquer tentativa de eliminar ou administrar a dissidência é uma forma de neutralizar a própria política.

5. A Estética e a Política: O Papel da Arte no Desentendimento

Embora O Desentendimento seja essencialmente uma obra sobre política, Rancière também faz uma conexão importante entre estética e política. Para ele, a arte desempenha um papel crucial no desentendimento, pois tem o poder de reconfigurar o partilhar do sensível — de criar novas formas de ver e perceber o mundo, que podem desestabilizar a ordem social existente.

A arte, assim como a política, pode interromper as formas convencionais de percepção e abrir espaço para novas subjetividades e novas formas de vida. Rancière sugere que a arte pode desorganizar o que é visível e audível, introduzindo novas maneiras de pensar sobre a sociedade e a política. Essa capacidade de reconfiguração estética está intimamente ligada à capacidade da política de produzir desentendimentos e de desafiar as normas estabelecidas.

Assim, Rancière vê a arte não como um campo separado da política, mas como uma esfera onde a política do sensível pode ser contestada e transformada. A arte e a política compartilham, portanto, um objetivo comum: desestabilizar o status quo e abrir novas possibilidades de igualdade e liberdade.

Conclusão

O Desentendimento é uma obra fundamental para a compreensão da teoria política de Jacques Rancière, que redefine a política como um campo de dissensão e conflito, e não como uma busca por consenso. Rancière oferece uma visão radical da política como o espaço onde os excluídos da sociedade se afirmam como iguais e desafiam as estruturas de poder estabelecidas. O desentendimento, em seu pensamento, é a chave para entender como a política emerge e se transforma.

Ao criticar as concepções tradicionais de democracia, Rancière propõe uma política baseada na dissensão e no conflito, onde a igualdade é um pressuposto e não um objetivo a ser alcançado. Sua obra continua a ser uma referência crucial para aqueles que buscam entender as dinâmicas de exclusão e inclusão na política contemporânea e para aqueles que veem na dissensão uma força vital para a transformação social.

Obras Relacionadas:

  1. A Partilha do Sensível, de Jacques Rancière – Uma obra complementar que aprofunda a relação entre estética e política, central para a teoria de Rancière.
  2. O Discurso sobre a Servidão Voluntária, de Étienne de La Boétie – Um texto clássico sobre a submissão e a rebelião, que dialoga com a noção de desentendimento e resistência de Rancière.
  3. Disenso: Sobre Política e Estética, de Chantal Mouffe – Uma obra que, assim como Rancière, explora a dissensão como componente central da política democrática.
  4. A Política das Ruas, de Hannah Arendt – Uma obra que explora a ação política e a esfera pública, questões que ressoam com as ideias de Rancière sobre política e dissidência.
  5. A Política e Suas Narrativas, de Claude Lefort – Um estudo sobre a natureza do poder e a política, em diálogo com as ideias de Rancière sobre o conflito político.

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