Judith Butler e a Materialização dos Corpos e Normas de Gênero
Bodies That Matter: On the Discursive Limits of “Sex”, publicado em 1993 por Judith Butler, é uma obra que continua o trabalho iniciado em Gender Trouble (1990), aprofundando a análise crítica sobre a construção de gênero, a performatividade e a materialidade dos corpos. Neste livro, Butler explora como os corpos ganham significado e são “materializados” dentro de discursos que regulam a sexualidade e o gênero, argumentando que tanto o corpo quanto o sexo são moldados por normas sociais e culturais. Ela aborda as interseções entre discurso, poder e materialidade, questionando as ideias tradicionais de corpo, sexo e gênero como algo dado e natural.
Butler reflete sobre como as normas de gênero e sexualidade são reiteradas de maneira que estabelecem quais corpos “importam” e quais são marginalizados ou excluídos. Ao fazê-lo, ela amplia sua teoria da performatividade de gênero para incluir uma crítica da materialidade, examinando como o corpo físico é constituído através de discursos e normas culturais que determinam o que é considerado inteligível ou “aceitável” dentro da ordem social.
1. Materialização dos Corpos e Normas de Gênero
Em Bodies That Matter, Butler argumenta que a materialidade do corpo — ou seja, o que entendemos como “corpo físico” — não é uma base biológica fixa, mas algo que é moldado e regulado por normas sociais e culturais. Ela critica a ideia de que o corpo tem uma realidade pré-discursiva, anterior ao discurso, sugerindo que a materialidade do corpo é sempre mediada e constituída por práticas discursivas que moldam como os corpos são entendidos e experimentados.
Butler introduz o conceito de “materialização”, argumentando que os corpos são produzidos e “tornados reais” através de repetidas normas e práticas discursivas. Essas práticas estabelecem quais corpos são inteligíveis e reconhecíveis dentro das estruturas sociais. Por exemplo, a noção de que existem apenas dois sexos — masculino e feminino — é o resultado de normas culturais e discursos que moldam o que consideramos “natural” ou “normal”. Essas normas excluem outras possibilidades de corpos e gêneros que não se enquadram no binarismo tradicional.
O processo de materialização é, portanto, normativo: ele não apenas produz corpos, mas também regula quais corpos são considerados válidos, viáveis ou inteligíveis. Aqueles que não se conformam às normas dominantes são muitas vezes marginalizados ou invisibilizados. Butler explora como os corpos que não seguem o binário de gênero ou as normas heteronormativas — como corpos trans, intersexuais ou queer — são tratados como “abjetos”, ou seja, como corpos que não importam e que são excluídos da esfera do reconhecimento social.
2. Performatividade e Materialidade: Continuando a Teoria de Gênero
Bodies That Matter continua o desenvolvimento da teoria da performatividade de Butler, que ela introduziu em Gender Trouble. A performatividade de gênero refere-se ao conceito de que o gênero não é algo que alguém “é”, mas algo que alguém “faz” repetidamente, seguindo normas sociais que prescrevem como os gêneros devem ser expressos. Em Bodies That Matter, Butler expande essa ideia para incluir a materialidade dos corpos, argumentando que os próprios corpos são produzidos por essas performances.
Butler desafia a noção de que o corpo e o sexo são bases naturais sobre as quais o gênero é construído. Em vez disso, ela argumenta que o sexo (assim como o gênero) é também o resultado de práticas performativas. Isso significa que o sexo, como o gênero, é algo que se torna inteligível e real através de repetidas performances que seguem normas sociais. Ao mesmo tempo, essas normas excluem outras possibilidades de corpos que não se conformam à dicotomia de sexo e gênero.
Por exemplo, ao insistirmos que existem apenas dois sexos (masculino e feminino), reiteramos uma norma que materializa os corpos dentro dessas categorias. Corpos que não se encaixam nesse binarismo são, portanto, invisibilizados ou tratados como “anômalos”. Butler sugere que, ao desafiar essas normas, podemos abrir espaço para novas formas de materialidade corporal que não se conformem ao binarismo tradicional.
3. O Conceito de Abjeção e a Exclusão dos Corpos “Ininteligíveis”
Um dos conceitos centrais em Bodies That Matter é o de abjeção, que Butler empresta da teoria psicanalítica de Julia Kristeva. A abjeção refere-se àquilo que é excluído ou marginalizado porque não se ajusta às normas sociais. Em termos de corpo e gênero, os corpos abjetos são aqueles que não se conformam às expectativas normativas e, portanto, são tratados como fora do escopo do que é considerado humano ou reconhecível.
Para Butler, os corpos abjetos são aqueles que desafiam o binarismo de sexo e gênero, como as pessoas transgênero, intersexuais ou aqueles que não seguem as normas de gênero heteronormativas. Esses corpos são frequentemente desumanizados ou considerados “ininteligíveis” dentro da ordem social. A abjeção funciona para garantir que apenas certos corpos sejam reconhecidos e valorizados, enquanto outros são relegados à margem.
Ela explora como a abjeção é uma ferramenta de poder que mantém a ordem social, regulando quem é considerado “normal” e quem é visto como “anômalo”. No entanto, Butler também sugere que a resistência à abjeção pode abrir caminho para novas formas de subjetividade e reconhecimento. Ao desafiar as normas que produzem abjeção, podemos expandir o campo de quais corpos “importam”.
4. A Crítica ao Essencialismo e o Poder Disciplinar sobre os Corpos
Um dos principais alvos da crítica de Butler em Bodies That Matter é o essencialismo de gênero e sexo, que afirma que o corpo tem uma essência fixa e que o gênero é derivado dessa essência biológica. Butler argumenta que essa visão essencialista reforça as estruturas de poder que normatizam os corpos e excluem aqueles que não se conformam a essas normas.
Ela sugere que o poder disciplinar, conforme descrito por Michel Foucault, opera não apenas para controlar os comportamentos, mas também para moldar a própria materialidade dos corpos. As normas de gênero e sexo são, portanto, formas de poder que materializam os corpos de maneira a reforçar hierarquias sociais. O corpo é tanto o objeto quanto o produto do poder disciplinar.
Butler questiona as categorias fixas de “masculino” e “feminino”, argumentando que essas categorias são construídas por meio de repetidas performances e normas culturais que reforçam a ilusão de naturalidade. Ao desafiar essas normas, podemos desestabilizar as fronteiras entre masculino e feminino e abrir espaço para formas mais fluidas de existência corporal e de gênero.
5. A Subversão das Normas e a Política dos Corpos Queer
Butler também aborda a questão de como as normas de gênero e materialidade podem ser subvertidas. Ela argumenta que as performances de gênero não são sempre uma reiteração perfeita das normas dominantes. Há sempre a possibilidade de subversão, onde as normas são repetidas “com diferença”, abrindo espaço para novas formas de subjetividade e corporalidade.
A cultura queer, por exemplo, oferece exemplos de como as normas de gênero e sexualidade podem ser desafiadas e subvertidas. Butler sugere que as performances queer — que rejeitam as normas tradicionais de gênero e sexualidade — revelam o caráter construído dessas normas e oferecem possibilidades de novas formas de vida e de reconhecimento corporal.
Ela defende que o ativismo queer e as performances subversivas são formas de resistência que podem desestabilizar as normas de gênero e expandir as fronteiras do que é considerado um corpo “inteligível” ou “válido”. Ao desafiar as normas que materializam certos corpos como legítimos e outros como abjetos, o ativismo queer pode abrir caminho para uma sociedade mais inclusiva e diversificada.
Conclusão
Bodies That Matter é uma obra densa e crítica que continua o projeto de Judith Butler de questionar as normas que moldam a identidade de gênero e a materialidade dos corpos. Butler desafia a noção de que o sexo e o corpo são dados naturais e argumenta que eles são constituídos através de normas discursivas que regulam quais corpos são inteligíveis e quais são excluídos. A obra oferece uma análise poderosa das relações entre discurso, poder e materialidade, sugerindo que, ao desafiar essas normas, podemos abrir espaço para novas formas de existência corporal e subjetiva.
A obra é uma contribuição essencial para os estudos de gênero, teoria queer e filosofia feminista, e continua a inspirar debates sobre como o gênero e a sexualidade são regulados e sobre como podemos expandir as possibilidades de reconhecimento e inclusão.
Obras Relacionadas:
- Gender Trouble, de Judith Butler – A obra seminal onde Butler introduz a teoria da performatividade de gênero.
- The History of Sexuality, de Michel Foucault – Uma análise crítica das normas de sexualidade e como elas moldam os corpos e as subjetividades.
- The Second Sex, de Simone de Beauvoir – Uma obra clássica que também explora como o gênero é construído socialmente.
- Epistemology of the Closet, de Eve Kosofsky Sedgwick – Um estudo seminal sobre a construção de identidade sexual e as implicações políticas do armário.
- Testo Junkie, de Paul B. Preciado – Um trabalho que explora a materialidade do corpo e as normas de gênero e sexualidade a partir de uma perspectiva filosófica e experimental.