Jean-Luc Godard e a Revolução do Cinema com a Nouvelle Vague
Acossado (À bout de souffle), lançado em 1960, é o filme que marcou a estreia de Jean-Luc Godard como diretor e uma obra fundamental do movimento da Nouvelle Vague, que revolucionou o cinema mundial. Estrelado por Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg, o filme narra a história de Michel Poiccard, um pequeno criminoso que mata um policial e passa o filme fugindo da polícia, enquanto tenta convencer Patricia, uma jovem americana com quem tem um relacionamento, a fugir com ele para a Itália. Com seu estilo inovador, uso de técnicas não convencionais e abordagem improvisada, Acossado é considerado um marco na história do cinema, tanto pela forma como pela desconstrução das convenções narrativas e estilísticas de Hollywood.
Godard, junto com outros diretores da Nouvelle Vague, como François Truffaut e Claude Chabrol, desejava romper com as tradições do cinema francês, que consideravam rígidas e ultrapassadas. Eles buscavam uma linguagem cinematográfica mais livre, que se aproximasse do realismo e refletisse as mudanças culturais da época. Acossado exemplifica essa busca por liberdade artística, com sua narrativa fragmentada, diálogos improvisados e edição inovadora.
1. A Nouvelle Vague e o Espírito de Rebelião
Acossado é, em muitos aspectos, o manifesto cinematográfico da Nouvelle Vague. O movimento, nascido no final da década de 1950, foi impulsionado por jovens críticos e cineastas que queriam romper com as convenções do cinema francês clássico, que consideravam excessivamente formal e literário. Em vez de roteiros rigidamente estruturados, cenários artificiais e performances teatrais, a Nouvelle Vague defendia um cinema mais espontâneo, próximo do cotidiano, com um estilo visual inovador e uma abordagem narrativa mais livre.
Godard, que havia sido crítico na Cahiers du Cinéma, utilizou Acossado para romper com o tradicionalismo do cinema de estúdio. Filmado nas ruas de Paris, com uma abordagem quase documental, o filme emprega técnicas como a câmera na mão, planos-sequência longos, iluminação natural e uma montagem fragmentada e não convencional, que resultou em sua famosa técnica de “jump cut”. Essas inovações, muitas das quais surgiram de limitações orçamentárias, tornaram-se elementos distintivos da Nouvelle Vague.
A atitude rebelde e experimental do filme reflete o espírito da época, marcado por uma insatisfação com as normas culturais e a busca por liberdade, tanto no cinema quanto na vida. Acossado é uma celebração da juventude e da liberdade, ao mesmo tempo em que oferece uma crítica sutil à alienação e ao vazio existencial do pós-guerra.
2. O Anti-herói Michel Poiccard: Um Homenagem e Subversão ao Cinema Americano
Jean-Paul Belmondo interpreta Michel Poiccard, um dos personagens mais icônicos da Nouvelle Vague. Michel é um anti-herói clássico, um pequeno criminoso sem rumo que idolatra o estilo de vida dos gângsteres americanos. O personagem é uma homenagem de Godard aos filmes de crime noir de Hollywood, especialmente aos personagens de Humphrey Bogart, que Michel imita ao longo do filme, inclusive adotando seu gesto característico de passar o dedo pelos lábios.
Michel não segue o modelo de herói moral tradicional; ele é impulsivo, cínico e amoral, agindo sem um objetivo claro ou um código ético definido. Ao longo do filme, suas ações parecem sem propósito, e sua falta de compromisso emocional e intelectual reflete a alienação e a incerteza da juventude da época. Ele é uma figura trágica, representando a busca por identidade e significado em um mundo que parece desprovido de ambos.
Ao mesmo tempo, Michel é também uma figura subversiva. Enquanto Godard presta homenagem ao cinema de Hollywood, ele também o desconstrói. Em vez de retratar Michel como um herói romântico, Godard mostra a futilidade e a desesperança de seu estilo de vida. O destino de Michel — a traição de Patricia e sua morte violenta — sugere que o ideal de liberdade absoluta e o estilo de vida criminoso são ilusões. Godard desmonta o glamour dos filmes de gângster, revelando o vazio por trás da imagem de rebeldia.
3. Patricia e a Reversão do Papel Feminino no Cinema
Patricia, interpretada por Jean Seberg, é uma personagem complexa e ambígua. Inicialmente, ela parece ser a “femme fatale” típica dos filmes noir, uma mulher sedutora e misteriosa que pode levar o protagonista à ruína. No entanto, ao longo do filme, Patricia assume um papel mais ativo e decisivo na narrativa, desafiando os estereótipos femininos convencionais no cinema de gênero.
Embora Michel seja o personagem que constantemente tenta convencer Patricia a fugir com ele, é ela quem, no final, toma a decisão crucial de denunciá-lo à polícia. Sua traição surpreende Michel, mas não parece ser motivada por vingança ou paixão; é um ato frio, quase impessoal, que reflete sua própria busca por autonomia e identidade. Patricia não está disposta a sacrificar sua independência e seu futuro por Michel, e sua traição pode ser vista como uma recusa a seguir o caminho convencional da mulher submissa ou romântica que se sacrifica por um homem.
Godard, com Patricia, oferece uma reinterpretação da dinâmica entre homens e mulheres no cinema, questionando as expectativas tradicionais e criando uma personagem que não se encaixa facilmente em nenhum arquétipo. Patricia é tanto vítima quanto agente de sua própria narrativa, uma figura que escapa às convenções dos papéis femininos dos filmes de Hollywood.
4. A Edição e o “Jump Cut”: A Inovação Estilística de Godard
Uma das inovações técnicas mais marcantes de Acossado é o uso do jump cut — um corte abrupto entre dois planos que, ao invés de criar uma transição suave, destaca a interrupção na continuidade visual e temporal. Essa técnica, raramente usada no cinema convencional, foi adotada por Godard em grande parte por razões práticas: o filme era longo demais e precisava ser encurtado, então Godard cortou partes das cenas, criando os jump cuts.
No entanto, o que começou como uma solução pragmática tornou-se uma escolha estilística icônica. Os jump cuts de Acossado contribuíram para a sensação de velocidade e espontaneidade do filme, refletindo o estado de espírito errático e impulsivo de Michel. A edição fragmentada também subverte as expectativas do espectador, forçando-o a se engajar de maneira diferente com o filme, e quebrando as regras tradicionais de continuidade narrativa.
Essa técnica influenciaria profundamente o cinema posterior, especialmente o cinema independente e experimental, que adotaria o jump cut como uma maneira de criar um ritmo mais dinâmico e de destacar a artificialidade da narrativa cinematográfica.
5. Acossado e a Reflexão sobre o Existencialismo
Embora Acossado seja, em sua superfície, um filme de crime sobre um homem em fuga, há uma corrente subjacente de pensamento existencialista que permeia a obra. Michel e Patricia são personagens que agem com uma aparente liberdade absoluta, mas suas escolhas muitas vezes parecem ser impulsivas, vazias de significado, refletindo a filosofia existencialista de autores como Jean-Paul Sartre e Albert Camus.
Michel, em particular, é um exemplo de um “homem sem qualidades” existencialista, alguém que age sem um propósito claro e que está constantemente em busca de uma identidade que não consegue definir. Ele vive no presente, sem uma preocupação real com o futuro ou com as consequências de suas ações. Sua atitude de desdém pelo mundo e sua tentativa de viver “à margem” da sociedade fazem dele uma figura emblemática da alienação moderna.
No final, sua morte parece inevitável, mas também sem grande significado. Sua última frase, ao ser alvejado pela polícia, é uma reflexão sobre a palavra “nojento” que Patricia lhe dirige. Ele não morre com dignidade heróica, mas em uma espécie de confusão existencial, sem compreender completamente o que o levou até aquele momento.
Conclusão
Acossado é uma obra-prima do cinema moderno, não apenas por sua inovação técnica e estilística, mas também por sua capacidade de capturar o espírito de rebelião e questionamento cultural da época. Jean-Luc Godard desafiou as convenções do cinema tradicional, ao mesmo tempo em que criou uma narrativa que explora temas profundos de alienação, identidade e moralidade. Michel Poiccard, com sua arrogância e vulnerabilidade, e Patricia, com sua ambiguidade moral, permanecem como personagens icônicos do cinema, encapsulando o espírito da Nouvelle Vague e o impacto duradouro de Godard no cinema mundial.
Obras Relacionadas:
- Os Incompreendidos, de François Truffaut – Outro marco da Nouvelle Vague, centrado na juventude e na alienação, com uma abordagem igualmente inovadora.
- Acossado (Remake), de Jim McBride – Um remake do clássico de Godard, que traz uma versão mais moderna do anti-herói, mas sem a profundidade existencial do original.
- O Samurai, de Jean-Pierre Melville – Um filme noir francês que, assim como Acossado, explora o tema do anti-herói e a solidão existencial.
- Hiroshima, Meu Amor, de Alain Resnais – Outro exemplo de cinema da Nouvelle Vague, com uma narrativa fragmentada e reflexiva sobre o amor e a memória.
- Viver a Vida, de Jean-Luc Godard – Um filme posterior de Godard que também explora as relações humanas e o papel da mulher no cinema, com uma narrativa inovadora.