Félix Guattari e a Subversão das Estruturas de Poder
A Revolução Molecular, escrito por Félix Guattari em 1977, é uma obra que busca ampliar a noção de revolução para além da política tradicional e econômica, explorando as transformações subjetivas e micropolíticas que acontecem no cotidiano das pessoas. Guattari, conhecido por seu trabalho em colaboração com Gilles Deleuze, especialmente em O Anti-Édipo e Mil Platôs, introduz nesta obra o conceito de “revolução molecular”, uma forma de resistência e mudança que opera em pequenos fluxos, afetos, relações e subjetividades. Ele argumenta que as mudanças revolucionárias não se limitam às grandes estruturas de poder ou às revoluções macropolíticas, mas também ocorrem em níveis muito mais íntimos e descentralizados, nas interações cotidianas, nas formas de vida e nas subjetividades.
A ideia de uma “revolução molecular” se opõe à ideia de uma revolução massiva e macropolítica, que envolve a tomada do poder de um estado ou de uma instituição dominante. Guattari defende que as formas de opressão e controle estão infiltradas em todas as áreas da vida, inclusive nas formas como pensamos, nos relacionamos e sentimos. Por isso, a verdadeira revolução precisa acontecer nos níveis micropolíticos, nos pequenos gestos, nos afetos, nas práticas sociais e nas subjetividades. Essa revolução molecular é, segundo Guattari, uma forma mais difusa, mas igualmente transformadora, de resistência e subversão.
Guattari argumenta que as estruturas de poder são mantidas não apenas pela repressão física ou econômica, mas também através da organização dos desejos e da produção de subjetividades. Ele sustenta que o capitalismo e outras formas de dominação operam moldando os modos como as pessoas desejam, como sentem e como se veem no mundo. O conceito de “produção de subjetividade” é central em A Revolução Molecular, pois Guattari argumenta que as subjetividades — os modos como os indivíduos experimentam e entendem a si mesmos e o mundo ao redor — são moldadas por forças sociais, culturais e econômicas. A revolução, portanto, deve operar nesse nível, alterando as formas de desejo e os modos de ser que sustentam o status quo.
Uma das ideias fundamentais no livro é que o capitalismo contemporâneo não apenas controla os meios de produção, mas também os meios de subjetivação. Guattari acredita que a mídia, a publicidade, as instituições educacionais e os mecanismos de controle social são todos parte de um sistema que gera subjetividades conformistas, que aceitam as regras do capitalismo e reproduzem as formas de poder dominantes. A revolução molecular, por outro lado, busca desestabilizar esses processos de subjetivação, promovendo formas alternativas de desejo, de vida e de organização social.
Guattari também introduz a noção de dissidência micropolítica, que envolve a resistência cotidiana às normas e convenções que moldam nossa existência. Ele argumenta que as práticas micropolíticas, como os gestos cotidianos de solidariedade, a subversão das normas sociais e as experimentações na vida pessoal, são formas poderosas de resistência que podem desencadear mudanças maiores no tecido social. Essas microrrevoluções ocorrem em pequenos grupos, nas relações familiares, nos movimentos artísticos e culturais, e nas práticas de cuidado de si e dos outros. Elas podem não ser grandiosas ou visíveis como as revoluções tradicionais, mas são igualmente essenciais para a transformação social.
Outro tema importante em A Revolução Molecular é a crítica à noção de identidade fixa e estável. Guattari defende que as identidades são construídas e maleáveis, e que o processo de subjetivação é sempre fluido e mutável. Em vez de pensar em termos de identidades fixas — seja de classe, de gênero, de nacionalidade ou de raça —, Guattari sugere que a revolução deve envolver a abertura a novas formas de ser e de se relacionar com o mundo. Isso envolve a criação de espaços para a experimentação e a transformação, onde as subjetividades possam se desdobrar e se reinventar fora das normas impostas.
A obra também explora como as lutas revolucionárias do século XX, como os movimentos de libertação colonial, os movimentos feministas e os movimentos pelos direitos civis, influenciaram o pensamento revolucionário, mas Guattari sugere que essas lutas precisam ser complementadas por uma transformação nas esferas do desejo e da subjetividade. Para ele, a revolução não pode ser apenas uma mudança nas instituições ou nos sistemas econômicos, mas deve ser também uma revolução nas formas como vivemos nossas vidas cotidianas, como nos relacionamos com os outros e como experimentamos o mundo.
A Revolução Molecular foi escrito em um contexto de profundas transformações sociais e políticas, logo após os eventos de Maio de 1968 na França, que marcaram um ponto de virada na maneira como as revoluções eram concebidas. Guattari se inspirou nos movimentos de contracultura, nos movimentos sociais emergentes e nas novas formas de resistência política que surgiram na década de 1970. Ele reconhece que a revolução tradicional, centrada na tomada do poder do Estado, estava sendo desafiada por formas mais descentralizadas e difusas de resistência, e sua obra oferece uma maneira de entender e teorizar essas novas práticas.
Por fim, A Revolução Molecular também explora a relação entre a política e o inconsciente, dialogando com a psicanálise e o pensamento pós-estruturalista. Guattari, que também foi psicanalista, argumenta que o inconsciente é um campo de luta política, onde as formas de desejo são moldadas e controladas. Para ele, a liberação dos desejos e a transformação das subjetividades são elementos centrais da revolução, pois o desejo é uma força que pode ser usada tanto para reforçar quanto para subverter as estruturas de poder.
Para quem deseja explorar mais sobre micropolítica, subjetividade e resistência, seguem cinco obras recomendadas:
- O Anti-Édipo, de Gilles Deleuze e Félix Guattari – Um estudo seminal sobre o desejo, a política e a psicanálise, que desenvolve muitas das ideias encontradas em A Revolução Molecular.
- Mil Platôs, de Gilles Deleuze e Félix Guattari – Uma obra que expande os conceitos de micropolítica e subjetivação, abordando temas como rizoma, devir e linhas de fuga.
- Desejo e Prazer, de Michel Foucault – Um estudo sobre as formas de controle e resistência que operam no corpo e no desejo, que dialoga com as ideias de Guattari.
- O Poder Psiquiátrico, de Michel Foucault – Uma análise sobre as formas como o poder molda as subjetividades, especialmente através das instituições médicas e psiquiátricas.
- A Sociedade do Cansaço, de Byung-Chul Han – Uma reflexão sobre as formas contemporâneas de subjetivação e controle, que ecoa a crítica de Guattari ao capitalismo.