Jacques Rancière e a Reconfiguração do Sensível na Arte e na Política
A Partilha do Sensível: Estética e Política (Le Partage du Sensible: Esthétique et Politique), publicado em 2000, é uma das obras centrais de Jacques Rancière, onde o filósofo explora as intersecções entre estética e política. Rancière propõe que a política e a arte não são esferas separadas, mas estão intimamente conectadas através do que ele chama de “partilha do sensível” — a maneira pela qual o que pode ser visto, ouvido e pensado é distribuído na sociedade. Essa distribuição define quem pode ter voz, quem pode ser visto e como as pessoas e os objetos são percebidos, determinando as formas de inclusão e exclusão social.
Rancière argumenta que a política, assim como a arte, reorganiza essa partilha, criando novas formas de visibilidade e novos sujeitos políticos. A estética, portanto, não diz respeito apenas ao campo da arte, mas também à maneira como as relações de poder e as subjetividades são formadas. Em A Partilha do Sensível, Rancière oferece uma visão inovadora da política, vendo-a como um processo de redistribuição do que é visível, audível e pensável, e não apenas como uma luta por recursos ou poder institucional.
1. A Partilha do Sensível: O Que É e Como Funciona
No centro da obra está o conceito de partilha do sensível, que Rancière define como a forma como o mundo é organizado sensorialmente, isto é, como o que pode ser visto, ouvido, sentido e pensado é distribuído dentro de uma sociedade. Essa partilha não é neutra; ela reflete e sustenta as relações de poder, decidindo quem tem o direito de falar, quem pode ser visto e que tipos de experiências e temas são considerados legítimos para serem expressos no espaço público.
Rancière argumenta que, em qualquer sociedade, essa distribuição do sensível é, em última análise, política, porque define os limites da participação política e social. A “polícia” (um termo que Rancière usa de maneira crítica) é a ordem que mantém essa distribuição, definindo os papéis, os lugares e os modos de ser. A política, por outro lado, é o momento em que essa ordem é desafiada — quando aqueles que foram excluídos do partilhar do sensível reivindicam seu lugar e sua voz.
Portanto, a política, para Rancière, não é simplesmente uma questão de confronto entre interesses ou classes sociais, mas uma redistribuição radical da percepção, uma mudança na forma como o mundo sensível é organizado. A política acontece quando os invisíveis tornam-se visíveis, quando os sem voz falam e quando novas formas de ser e agir no mundo se tornam possíveis.
2. A Estética e a Política: A Arte como Prática Política
Para Rancière, a estética não é apenas um campo separado da arte ou do belo, mas é uma forma de pensar sobre a organização do sensível que tem implicações diretas para a política. Ele propõe que a arte tem o poder de desafiar e reconfigurar o partilhar do sensível, criando novas maneiras de ver, ouvir e pensar que desestabilizam as hierarquias sociais estabelecidas.
A arte, nesse sentido, não é uma forma de representação passiva, mas uma prática ativa que pode interromper o consenso e abrir espaço para novas subjetividades e novas formas de vida. Ao criar novas formas de percepção, a arte também cria novas formas de comunidade e novos modos de existência política. Rancière destaca que as transformações estéticas são, ao mesmo tempo, transformações políticas, porque redefinem quem tem o direito de aparecer no espaço público e como as experiências são compartilhadas.
Em A Partilha do Sensível, Rancière critica a ideia de que a arte deve ser apenas uma reflexão da realidade ou uma ferramenta de propaganda política. Em vez disso, ele vê a arte como uma prática de dissenso, que reconfigura os limites do sensível e desafia as formas convencionais de percepção e participação. O papel da arte, segundo Rancière, é reorganizar o que é visível e audível, criando novas formas de igualdade e liberdade.
3. A Política do Dissenso: Interrupção da Ordem Social
Rancière vê a política como o momento em que a ordem social é interrompida pelo dissenso. O dissenso, para ele, não é simplesmente um desacordo sobre políticas ou interesses, mas uma ruptura na própria forma como a sociedade está organizada. A política autêntica acontece quando aqueles que não têm uma voz reconhecida — os marginalizados ou excluídos — entram no campo político para afirmar sua igualdade.
A política, nesse sentido, é o ato de redistribuir o partilhar do sensível, criando novas formas de visibilidade e reconhecimento. O dissenso ocorre quando aqueles que foram excluídos da política afirmam seu direito de participar e, ao fazerem isso, reconfiguram os termos da política. Para Rancière, a democracia autêntica é esse processo contínuo de dissenso e redistribuição, onde novas vozes e novos sujeitos políticos emergem para desafiar a ordem estabelecida.
O dissenso é, portanto, central tanto para a política quanto para a estética, porque em ambos os casos o que está em jogo é a capacidade de reorganizar o sensível, de redefinir quem pode falar, quem pode ser visto e como as experiências são compartilhadas. O dissenso, ao criar novas formas de sensibilidade e novas formas de ser, é o que mantém viva a política democrática.
4. O Papel do Proletariado e das Classes Excluídas
Em A Partilha do Sensível, Rancière também aborda a questão do proletariado e das classes trabalhadoras, argumentando que a política emerge quando aqueles que são considerados “sem parte” — ou seja, os que estão fora dos limites da cidadania plena ou da visibilidade política — reivindicam seu direito de participar. A política é, para ele, o momento em que esses sujeitos excluídos se afirmam como iguais.
O proletariado, para Rancière, não é apenas uma classe social definida por suas condições materiais, mas uma figura política que interrompe a ordem do partilhar do sensível. Quando os trabalhadores se levantam para afirmar sua igualdade política, eles desafiam não apenas as desigualdades econômicas, mas a própria distribuição de poder e visibilidade na sociedade.
A política, então, não é um processo pelo qual os excluídos são “integrados” de maneira pacífica, mas uma luta contínua para redefinir o que é visto e ouvido, para reorganizar as fronteiras da participação política. Essa redefinição contínua da ordem sensível é o que, para Rancière, constitui a essência da política.
5. Arte, Política e Emancipação
A ideia de que a arte pode ser um meio de emancipação política é central em A Partilha do Sensível. Para Rancière, a arte tem o poder de emancipar ao reconfigurar o sensível, ao permitir que novas formas de ver e entender o mundo surjam. Essa reconfiguração estética pode abrir espaço para novas formas de comunidade e novas maneiras de ser, desafiando as hierarquias sociais e políticas estabelecidas.
No entanto, Rancière também adverte contra a instrumentalização da arte para fins políticos. Ele argumenta que a arte não deve ser reduzida a um simples veículo de mensagens políticas, pois isso limitaria seu potencial emancipador. A verdadeira força da arte, para Rancière, está em sua capacidade de reconfigurar o sensível, de criar novas possibilidades de percepção que, por si só, já são atos políticos.
A emancipação, nesse contexto, não é um objetivo final a ser alcançado, mas um processo contínuo de dissenso e reconfiguração. A política e a arte são ambas campos onde esse processo acontece, onde novas formas de igualdade e liberdade são continuamente reivindicadas e reconfiguradas.
Conclusão
A Partilha do Sensível é uma obra fundamental para entender a relação entre estética e política no pensamento de Jacques Rancière. Ele oferece uma visão inovadora da política como um processo de redistribuição do sensível, onde o dissenso e a interrupção da ordem estabelecida são centrais. Para Rancière, tanto a política quanto a arte têm o poder de reorganizar o que é visível, audível e pensável, abrindo espaço para novas formas de subjetividade e novos modos de vida.
A obra de Rancière continua a ser uma referência essencial para aqueles que estudam estética, política e as intersecções entre arte e ação política. A Partilha do Sensível desafia as divisões tradicionais entre arte e política, oferecendo uma nova maneira de pensar sobre o papel da estética na transformação social.
Obras Relacionadas:
- O Desentendimento, de Jacques Rancière – Um texto complementar onde Rancière explora a ideia de dissenso como central para a política democrática.
- A Política da Estética, de Jacques Rancière – Uma obra que aprofunda a discussão sobre a relação entre estética e política no pensamento de Rancière.
- Estética Relacional, de Nicolas Bourriaud – Um estudo sobre o papel da arte na criação de novas formas de sociabilidade, em diálogo com as ideias de Rancière.
- A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord – Uma crítica à dominação das imagens na sociedade contemporânea, relevante para o debate sobre a partilha do sensível.
- Arte e Revolução, de Herbert Marcuse – Um estudo sobre a capacidade da arte de funcionar como força emancipadora, em sintonia com a visão de Rancière sobre estética e política.