A Proclamação do Super-Homem e a Transvaloração dos Valores
Assim Falou Zaratustra, publicado em 1883, é uma das obras mais emblemáticas e enigmáticas de Friedrich Nietzsche. Escrito em forma de prosa poética e com uma estrutura filosófica incomum, o livro apresenta as ideias centrais de Nietzsche sobre o super-homem (Übermensch), a morte de Deus, e a transvaloração de todos os valores. Essas ideias são articuladas através da figura do profeta Zaratustra, que desce das montanhas para compartilhar sua sabedoria e questionar as bases da moralidade e da religião tradicional.
O estilo narrativo de Assim Falou Zaratustra é profundamente simbólico e alegórico, o que torna a obra um texto filosófico literário único. Nietzsche usa o personagem Zaratustra (inspirado no profeta persa Zoroastro) como porta-voz de suas ideias, expondo suas reflexões sobre o significado da vida, a liberdade humana e a necessidade de superação dos valores herdados. Zaratustra é uma figura de transição, que desafiando as crenças religiosas e morais de seu tempo, busca conduzir a humanidade a um novo estágio de existência, baseado na criação de novos valores.
1. A Morte de Deus
Um dos temas centrais de Assim Falou Zaratustra é a ideia da morte de Deus, que já havia sido introduzida em outras obras de Nietzsche, como A Gaia Ciência. Zaratustra proclama que “Deus está morto”, simbolizando o colapso das crenças religiosas tradicionais e o fim da era da moralidade cristã como fundamento da civilização ocidental. Para Nietzsche, a morte de Deus significa o fim das certezas absolutas que guiavam a vida humana, e representa um momento de crise cultural e existencial.
A morte de Deus não é apenas uma negação da religião, mas também uma crítica ao dogmatismo e às verdades transcendentais que a humanidade adotou por séculos. Com a morte de Deus, os seres humanos são deixados sem um fundamento metafísico para suas vidas e, por isso, devem assumir a responsabilidade de criar seus próprios valores e dar sentido à sua existência.
Zaratustra não lamenta a morte de Deus; em vez disso, ele a vê como uma oportunidade para a humanidade se libertar das amarras morais e religiosas que limitam a vida e o potencial humano. O que vem após a morte de Deus é uma nova era de criação, em que os indivíduos devem superar os velhos valores e forjar novos modos de ser.
2. O Super-Homem (Übermensch)
A ideia do super-homem (Übermensch) é uma das mais importantes e desafiadoras de Assim Falou Zaratustra. O super-homem é o ser humano que transcende os valores tradicionais e cria seus próprios valores, vivendo de maneira afirmativa e criativa. Para Nietzsche, o super-homem representa a superação da moralidade cristã e do homem “medíocre”, que se submete a normas herdadas e vive de acordo com as expectativas impostas pela sociedade.
Zaratustra proclama que o ser humano é uma “ponte” entre o animal e o super-homem, ou seja, uma transição que deve ser superada. O super-homem é aquele que, ao contrário do homem comum, não busca a conformidade, mas vive de acordo com sua própria vontade de potência, criando seus próprios valores e afirmando a vida em todas as suas dimensões, inclusive o sofrimento e a morte.
Nietzsche contrasta o super-homem com o que ele chama de “último homem”, uma figura que representa o conformismo e a decadência da civilização moderna. O último homem busca apenas conforto, segurança e estabilidade, evitando o risco e o conflito. O super-homem, por outro lado, abraça o perigo, a incerteza e a criação de algo novo, mesmo que isso signifique a ruptura com o que é seguro e conhecido.
A visão de Nietzsche do super-homem é uma resposta à crise de valores resultante da morte de Deus. O super-homem é aquele que encontra sentido em sua própria existência, sem a necessidade de justificativas externas ou transcendentes. Ele é a personificação da autonomia, da força criativa e da afirmação da vida.
3. A Transvaloração de Todos os Valores
Outro tema essencial em Assim Falou Zaratustra é a transvaloração de todos os valores (Umwertung aller Werte), que é a proposta de Nietzsche para superar os valores herdados da moralidade cristã e da tradição filosófica ocidental. Nietzsche acredita que a moralidade cristã, com sua ênfase em valores como humildade, submissão e renúncia, é uma moralidade de fraqueza e ressentimento. Ele propõe que esses valores devem ser reavaliados e superados, e que novos valores, baseados na afirmação da vida, na força e na criatividade, devem ser criados.
Zaratustra é o profeta dessa transvaloração. Ele prega que a humanidade deve abandonar os valores herdados, que negam a vida e promovem a submissão, e adotar uma nova moralidade que celebre a força, o poder criativo e a capacidade de superar limites. Nietzsche acredita que os valores cristãos foram criados pelos fracos para se protegerem dos fortes, e que esses valores reprimem os instintos vitais e inibem o desenvolvimento humano.
A transvaloração de todos os valores não é apenas uma rejeição da moralidade tradicional, mas também um convite para a criação de novas formas de viver e de pensar, que estejam em harmonia com a vida e com a vontade de potência que, segundo Nietzsche, é a força fundamental que impulsiona todos os seres vivos.
4. O Eterno Retorno
Em Assim Falou Zaratustra, Nietzsche também apresenta a ideia do eterno retorno (ewige Wiederkunft), um dos conceitos filosóficos mais profundos e desafiadores de sua obra. O eterno retorno é a ideia de que a vida, tal como é vivida, se repetirá infinitamente em um ciclo eterno. Tudo o que acontece, cada momento e cada experiência, será repetido exatamente da mesma maneira, para sempre.
O eterno retorno não é apenas uma hipótese metafísica, mas um teste psicológico e existencial. Se a vida tivesse que ser vivida repetidamente, sem mudança, isso exigiria uma aceitação radical da existência. O pensamento do eterno retorno desafia os indivíduos a viverem suas vidas de tal forma que pudessem afirmar cada momento, sem arrependimentos ou ressentimentos. Para Nietzsche, a capacidade de afirmar o eterno retorno é um sinal da força e da capacidade de abraçar plenamente a vida em sua totalidade, com todos os seus altos e baixos.
Zaratustra apresenta o eterno retorno como uma revelação que desafia o sentido tradicional da vida e da temporalidade. Ele sugere que, para aqueles que podem abraçar essa ideia, a vida se torna uma afirmação contínua de sua própria beleza e intensidade, em vez de uma busca por uma salvação ou uma existência transcendente.
5. O Último Homem e o Desafio ao Conformismo
Em contraste com o super-homem, Nietzsche descreve o “último homem”, uma figura que representa o conformismo, a mediocridade e a decadência da civilização moderna. O último homem é aquele que busca apenas o conforto e a segurança, que evita o risco e a criação de algo novo. Ele é o produto de uma sociedade que valoriza a igualdade, a complacência e a estabilidade em detrimento da grandeza, da inovação e da superação.
Zaratustra rejeita o último homem como o oposto do super-homem. Enquanto o último homem busca evitar o sofrimento e vive de acordo com as normas da sociedade, o super-homem é aquele que abraça o perigo, o conflito e a criação. O último homem simboliza a estagnação da humanidade, enquanto o super-homem representa o potencial de transcendência e de transformação.
Nietzsche vê a cultura moderna como cada vez mais inclinada a produzir o último homem, em uma sociedade que valoriza a mediocridade e a conformidade em detrimento da força criativa. O desafio de Zaratustra é incitar os seres humanos a superarem essa tendência e a se tornarem criadores de novos valores.
Conclusão
Assim Falou Zaratustra é uma obra filosófica profundamente inovadora e complexa, que desafia os leitores a reconsiderarem seus pressupostos sobre moralidade, religião e o sentido da vida. Através da figura de Zaratustra, Nietzsche apresenta sua visão do super-homem, da morte de Deus e da transvaloração de todos os valores, convidando os seres humanos a abraçarem a vida em sua plenitude e a se libertarem das amarras da moralidade tradicional.
A obra, com sua prosa poética e simbólica, é um texto central para entender a filosofia de Nietzsche e continua a influenciar a filosofia, a literatura e a teoria política. Assim Falou Zaratustra é um chamado à superação e à criação, uma obra que desafia o conformismo e a decadência, e que propõe uma nova visão da vida baseada na força, na criatividade e na afirmação radical da existência.
Obras Relacionadas:
- Além do Bem e do Mal, de Friedrich Nietzsche – Uma crítica às noções tradicionais de moralidade e um desenvolvimento das ideias de transvaloração.
- Genealogia da Moral, de Friedrich Nietzsche – Um estudo detalhado sobre as origens da moralidade cristã e a crítica ao ressentimento.
- A Gaia Ciência, de Friedrich Nietzsche – Uma obra que introduz muitos dos temas de Zaratustra, incluindo a morte de Deus e o eterno retorno.
- O Anticristo, de Friedrich Nietzsche – Um ataque direto ao cristianismo e uma defesa da transvaloração dos valores.
- O Nascimento da Tragédia, de Friedrich Nietzsche – Uma obra anterior de Nietzsche que explora a oposição entre o apolíneo e o dionisíaco na cultura grega.