A Crítica de Herbert Marcuse à Tolerância como Ferramenta de Controle Social
Tolerância Repressiva é um ensaio escrito por Herbert Marcuse em 1965, no qual ele apresenta uma crítica contundente ao conceito de tolerância nas sociedades liberais, argumentando que a tolerância, quando aplicada de maneira indiscriminada, pode se tornar uma ferramenta de repressão e controle social. Publicado em um contexto de intensa agitação política nos Estados Unidos, incluindo o movimento pelos direitos civis e a oposição à Guerra do Vietnã, o texto de Marcuse desafia a visão convencional de que a tolerância universal é um valor positivo e necessário para a democracia.
Marcuse defende que, sob o capitalismo avançado, a “tolerância” serve para manter as estruturas de poder, permitindo que ideologias opressoras e falsas narrativas prosperem ao lado de ideias verdadeiramente emancipadoras. A aparente imparcialidade da tolerância em relação a todas as ideias, boas ou más, acaba beneficiando os interesses do status quo, impedindo que as forças progressistas efetivamente desafiem as estruturas dominantes de opressão.
1. A Tolerância como Ferramenta de Repressão
No início de Tolerância Repressiva, Marcuse argumenta que o conceito de tolerância nas sociedades liberais contemporâneas é, em grande medida, uma ferramenta de controle, ao invés de um verdadeiro valor libertador. Ele sugere que a tolerância, tal como é aplicada, neutraliza o potencial revolucionário das ideias e movimentos que buscam mudanças estruturais profundas, ao dar o mesmo espaço e legitimidade para ideologias opressivas e retrógradas.
Marcuse afirma que a tolerância, quando é estendida igualmente a todas as ideias e movimentos, sem distinção entre aqueles que promovem a liberdade e aqueles que perpetuam a opressão, acaba funcionando como uma forma de repressão. Ele sugere que a tolerância universal legitima ideias que perpetuam o racismo, o militarismo, o sexismo e outras formas de dominação, tornando muito mais difícil que as forças progressistas possam efetivamente combater essas opressões.
A chave da crítica de Marcuse é que, em uma sociedade onde as relações de poder são assimétricas, a tolerância indiscriminada acaba favorecendo os poderosos e perpetuando as estruturas de dominação. Ao permitir que ideias opressivas e reacionárias tenham o mesmo espaço que ideias emancipadoras, a tolerância acaba por reprimir o potencial transformador das ideias críticas e revolucionárias, mantendo a ordem social existente.
2. A Tolerância Negativa e Positiva
Marcuse faz uma distinção importante entre dois tipos de tolerância: a “tolerância negativa” e a “tolerância positiva”. A tolerância negativa refere-se à aceitação passiva de todas as ideias e ações, independentemente de seu conteúdo, promovendo a ideia de que todas as opiniões devem ser igualmente respeitadas e permitidas, mesmo que algumas sejam claramente prejudiciais à liberdade e à justiça.
A tolerância positiva, por outro lado, é a tolerância ativa em direção a ideias e ações que promovam a emancipação, a justiça e a liberdade. Para Marcuse, a verdadeira função da tolerância deveria ser a de promover a libertação e a transformação social, o que significa que a tolerância não deve ser estendida a ideias que defendem a opressão, o autoritarismo ou a dominação.
Ele argumenta que, em uma sociedade verdadeiramente democrática e justa, a tolerância deve ser seletiva. Deve-se tolerar e encorajar ideias que busquem ampliar a liberdade e a justiça, enquanto se rejeitam as ideologias que ameaçam esses valores. A tolerância não deve ser neutra, pois a neutralidade em relação à opressão significa, na prática, a legitimação dessa opressão.
3. A Repressão da Dissidência Progressista
Outro aspecto central de Tolerância Repressiva é a análise de como a tolerância é usada para reprimir movimentos progressistas e revolucionários. Marcuse observa que, nas sociedades capitalistas avançadas, os movimentos de oposição — especialmente aqueles que buscam mudanças radicais — são frequentemente marginalizados, ridicularizados ou silenciados, enquanto as ideias conservadoras e reacionárias são permitidas ou mesmo incentivadas.
Ele sugere que a tolerância funciona como uma forma de repressão sutil, pois permite que o sistema capitalista pareça aberto e democrático, ao mesmo tempo que marginaliza ou neutraliza as vozes que realmente desafiam suas estruturas de poder. Ao tolerar todas as opiniões, o sistema parece justo e imparcial, mas, na prática, ele cria condições em que as ideias verdadeiramente críticas e transformadoras não podem prosperar.
Marcuse aponta para a maneira como o discurso de esquerda, que busca desafiar o racismo, a desigualdade econômica e outras formas de opressão, é frequentemente tratado como “extremista” ou “antidemocrático”, enquanto as ideologias de direita que perpetuam o status quo são vistas como legítimas expressões de liberdade de pensamento. Dessa forma, a tolerância repressiva impede que os movimentos revolucionários ganhem força, ao passo que mantém as bases de opressão intactas.
4. A Liberdade de Expressão e Seus Limites
A liberdade de expressão é um dos temas centrais da discussão de Marcuse sobre tolerância. Ele reconhece que a liberdade de expressão é um valor fundamental nas sociedades democráticas, mas questiona se essa liberdade deve ser aplicada de forma irrestrita. Ele argumenta que, em uma sociedade onde a dominação é estrutural, a liberdade de expressão irrestrita pode ser usada para promover a opressão e a desigualdade.
Marcuse defende que deve haver limites para a liberdade de expressão, especialmente quando ela é usada para propagar ideologias que minam a própria liberdade. Ele sugere que ideias racistas, fascistas ou autoritárias não devem ter o mesmo direito de expressão que ideias que busquem expandir a liberdade e a justiça. Para ele, a liberdade de expressão não pode ser uma licença para promover a opressão.
Esse argumento de Marcuse levanta uma questão polêmica sobre os limites da liberdade em uma sociedade democrática. Ele sugere que, para que a verdadeira liberdade floresça, é necessário restringir a liberdade daqueles que a ameaçam. Essa posição contraria a visão liberal tradicional de que a liberdade de expressão deve ser absoluta, destacando a necessidade de proteger a sociedade contra as forças que buscam minar suas bases democráticas e igualitárias.
5. A Necessidade de uma Tolerância Libertadora
Para Marcuse, a solução para a contradição entre tolerância e repressão é o desenvolvimento de uma “tolerância libertadora”. Isso significa que a tolerância deve ser seletiva e dirigida para apoiar ideias e ações que promovam a emancipação, a igualdade e a justiça. Ele argumenta que, em uma sociedade verdadeiramente livre, a tolerância deve ser usada como uma ferramenta para ampliar a liberdade, e não para preservar o status quo.
A tolerância libertadora, segundo Marcuse, implica uma rejeição ativa de ideologias que promovem a opressão, como o racismo, o fascismo e o sexismo. Para ele, a tolerância não pode ser neutra ou passiva diante dessas formas de dominação; ela deve ser um ato consciente de promover a liberdade e a justiça. Isso significa que a sociedade deve ser intolerante em relação à intolerância e à opressão.
Marcuse sugere que a transformação social só pode ocorrer quando a tolerância é usada de forma crítica, para desmantelar as estruturas de poder e para apoiar movimentos que busquem a emancipação. Ele reconhece que essa posição pode ser vista como autoritária ou antidemocrática por alguns, mas argumenta que, sem essa abordagem crítica, a tolerância continuará a funcionar como uma ferramenta de repressão em vez de um meio de libertação.
Conclusão
Tolerância Repressiva é uma obra provocativa de Herbert Marcuse, que desafia as concepções tradicionais de tolerância e liberdade nas sociedades liberais. Marcuse argumenta que a tolerância indiscriminada serve como um mecanismo de repressão, pois legitima ideologias opressivas e impede que as forças progressistas efetivamente desafiem o status quo. Ele defende que a tolerância deve ser seletiva e direcionada para apoiar a emancipação e a justiça, rejeitando as ideologias que promovem a opressão.
O ensaio continua a ser relevante para os debates contemporâneos sobre liberdade de expressão, justiça social e o papel da tolerância nas sociedades democráticas. Marcuse levanta questões fundamentais sobre os limites da tolerância e a necessidade de uma abordagem crítica que promova a verdadeira liberdade e igualdade.
Obras Relacionadas:
- O Homem Unidimensional, de Herbert Marcuse – Uma análise da sociedade de consumo e da forma como o capitalismo avança limita o pensamento crítico e a dissidência.
- Ideologia e Utopia, de Karl Mannheim – Um estudo sobre como as ideologias moldam o pensamento social e político, em diálogo com as preocupações de Marcuse sobre o papel da ideologia na repressão.
- A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord – Uma crítica à sociedade de consumo e ao papel da mídia e da cultura de massa na manutenção do poder, complementando as ideias de Marcuse sobre a tolerância.
- Vigiar e Punir, de Michel Foucault – Um estudo sobre como o poder é exercido através de mecanismos de controle social, em diálogo com a análise de Marcuse sobre a repressão sutil nas democracias liberais.
- Liberdade de Expressão, Para Quem?, de Noam Chomsky – Uma reflexão sobre os limites da liberdade de expressão em contextos de desigualdade de poder, ressoando com a crítica de Marcuse.