Julia Kristeva e a Exploração da Abjeção e do Nojo
Poderes do Horror: Ensaio sobre a Abjeção (Pouvoirs de l’horreur: essai sur l’abjection), publicado em 1980, é uma das obras mais influentes de Julia Kristeva, onde ela aborda o conceito de abjeção — um sentimento de repulsa ou nojo que experimentamos diante de certos objetos, corpos ou situações que ameaçam as fronteiras de nosso senso de identidade e ordem simbólica. Kristeva propõe que a abjeção é um fenômeno psíquico e social profundamente enraizado, relacionado às nossas tentativas de definir o que é “eu” em oposição ao “não eu” ou ao “outro”, e que emerge em situações de liminaridade, como a confrontação com o corpo em decomposição, fluidos corporais ou outros elementos que perturbam a distinção entre sujeito e objeto.
A abjeção, segundo Kristeva, não é apenas uma experiência física, mas também cultural e simbólica, afetando nossa forma de construir e manter fronteiras entre o que é aceitável e o que é proibido ou inaceitável. O ensaio mistura psicanálise, teoria literária e filosofia para analisar como as sociedades lidam com o que é considerado “abjeto”, e como essas categorias são moldadas e reforçadas por meio de normas culturais, religiosas e sociais.
1. O Conceito de Abjeção: Entre o Eu e o Outro
A abjeção é o conceito central de Poderes do Horror, e Kristeva o define como uma reação de repulsa ou nojo que surge quando somos confrontados com algo que ameaça as fronteiras de nossa identidade e do nosso senso de ordem. Para Kristeva, a abjeção não é simplesmente o resultado de algo fisicamente desagradável, mas uma experiência que está profundamente enraizada no inconsciente e nas dinâmicas de separação entre o eu e o outro.
Ela argumenta que, ao longo do desenvolvimento psíquico, aprendemos a estabelecer limites claros entre o que pertence ao nosso “eu” e o que é “não eu”, ou seja, aquilo que está fora de nós e que percebemos como potencialmente ameaçador. No entanto, a abjeção surge quando esses limites são perturbados ou questionados, levando-nos a uma sensação de colapso da ordem simbólica que define nossa identidade.
Por exemplo, o contato com fluidos corporais — sangue, excrementos, ou outros resíduos — provoca abjeção porque nos lembra de nossa vulnerabilidade física e da fragilidade das fronteiras entre o corpo e o mundo externo. A abjeção também aparece diante de situações que desafiam as normas sociais ou culturais, como tabus sexuais, morte e decomposição, ou corpos “estranhos” que não se encaixam nas normas aceitas.
2. Abjeção e o Desenvolvimento Psíquico: Separação e Identidade
Kristeva relaciona o conceito de abjeção à psicanálise freudiana e lacaniana, argumentando que a experiência da abjeção está ligada a um estágio muito precoce do desenvolvimento psíquico, antes mesmo da aquisição da linguagem. Nesse estágio, a criança começa a se separar da mãe, formando sua própria identidade ao distinguir o que é “eu” e o que é “outro”. A abjeção, então, é uma tentativa de manter essa separação, rejeitando qualquer coisa que lembre o indivíduo da fusão original com a mãe e da vulnerabilidade à perda de identidade.
Para Kristeva, a abjeção é um mecanismo defensivo que nos protege do colapso das fronteiras entre o eu e o outro, fronteiras que são fundamentais para a constituição do sujeito. No entanto, essa defesa é frágil, e a abjeção surge justamente quando essas fronteiras são ameaçadas. Assim, a abjeção está relacionada tanto ao desejo de manter a separação quanto ao medo inconsciente de perder essa distinção.
A abjeção também se manifesta em fenômenos como o nojo em relação à morte e à decomposição, que nos confrontam com a realidade de nossa mortalidade e a dissolução do corpo. Essas experiências abjetas nos forçam a reconhecer a precariedade das fronteiras que mantemos entre a vida e a morte, o corpo e o mundo, o sujeito e o objeto.
3. Abjeção, Religião e o Sagrado
Kristeva explora como a abjeção está profundamente enraizada nas práticas culturais e religiosas, muitas das quais envolvem a tentativa de lidar com o que é visto como impuro, contaminado ou proibido. Ela argumenta que muitas práticas religiosas — como rituais de purificação, tabus alimentares, e as proibições em torno da morte e da sexualidade — são formas de lidar com a abjeção, impondo uma ordem simbólica que tenta manter o que é considerado impuro ou abjeto fora dos limites da vida social.
O conceito de abjeção, segundo Kristeva, está frequentemente associado ao sagrado, na medida em que o sagrado é muitas vezes construído como o oposto do impuro ou do profano. A distinção entre o puro e o impuro é fundamental para muitas tradições religiosas, e Kristeva argumenta que essas distinções refletem o medo profundo da abjeção. Ao estabelecer normas e rituais que mantêm a pureza, as religiões tentam controlar o medo da contaminação e da dissolução das fronteiras entre o puro e o impuro, o humano e o inumano, o corpo e o espírito.
Ela também sugere que o sacrifício religioso pode ser visto como uma tentativa de lidar com a abjeção, na medida em que envolve a transgressão e, ao mesmo tempo, a reafirmação das fronteiras entre o sagrado e o profano. O sacrifício simboliza tanto a destruição quanto a regeneração das fronteiras que mantêm a ordem social e cultural.
4. O Corpo Feminino como Espaço de Abjeção
Kristeva dedica uma parte significativa de Poderes do Horror à análise de como o corpo feminino é frequentemente visto como um local de abjeção, particularmente na cultura patriarcal. Ela argumenta que o corpo feminino, por sua associação com o nascimento, os fluidos corporais e a sexualidade, muitas vezes evoca abjeção nas sociedades patriarcais, que tentam controlar e regulamentar o corpo feminino por meio de tabus, normas e proibições.
O corpo da mulher grávida, por exemplo, é uma figura abjeta porque desafia as fronteiras entre o eu e o outro, contendo tanto um corpo individual quanto um outro corpo em crescimento. Essa ambiguidade corporal, segundo Kristeva, perturba a ordem simbólica que define identidades fixas e separadas, tornando o corpo feminino uma fonte de fascínio e repulsa ao mesmo tempo.
Kristeva também explora como a menstruação, o parto e a maternidade são frequentemente cercados de tabus e práticas de purificação, precisamente porque envolvem a transgressão das fronteiras corporais e sociais. Essas práticas refletem o medo do poder desestabilizador do corpo feminino e tentam conter a ameaça que ele representa para as normas patriarcais de pureza e controle.
5. Abjeção na Literatura e na Arte
Kristeva argumenta que a abjeção também desempenha um papel importante na literatura e na arte, particularmente em gêneros como o horror, a tragédia e o grotesco. Para ela, a arte oferece um espaço simbólico onde a abjeção pode ser explorada e expressa, permitindo que os espectadores ou leitores confrontem o que é considerado impuro ou inaceitável de maneiras que seriam impossíveis na vida cotidiana.
Ela destaca escritores como Dostoiévski e Céline, cujas obras lidam com o que é abjeto, expondo as partes mais sombrias e perturbadoras da experiência humana. Através da arte, a abjeção pode ser transformada em uma experiência catártica, permitindo que os leitores e espectadores enfrentem seus medos mais profundos e suas ansiedades em relação à morte, ao corpo e à identidade.
Para Kristeva, a arte tem o poder de revelar a fragilidade das fronteiras que mantêm a ordem simbólica e a identidade. Ao explorar a abjeção, a arte desafia as normas culturais e sociais, expondo o que é geralmente reprimido ou excluído da vida cotidiana.
Conclusão
Poderes do Horror é uma obra profundamente filosófica e psicanalítica que oferece uma análise poderosa do conceito de abjeção e suas implicações para a psique humana, a cultura e a sociedade. Julia Kristeva argumenta que a abjeção está no centro da experiência humana, na medida em que lida com as fronteiras frágeis que mantêm a ordem simbólica e a identidade.
Através de sua análise da abjeção na religião, na literatura, no corpo feminino e na psicanálise, Kristeva revela como o que consideramos impuro ou inaceitável é central para a construção de nossa identidade e de nossas normas culturais. Ao explorar o que é abjeto, Kristeva nos convida a reconsiderar como lidamos com o que é “outro” — tanto dentro de nós mesmos quanto no mundo ao nosso redor.
Obras Relacionadas:
- Totem e Tabu, de Sigmund Freud – Uma obra psicanalítica fundamental sobre as origens dos tabus e das normas sociais em relação à abjeção.
- O Estranho Familiar, de Sigmund Freud – Um ensaio sobre o Unheimlich (estranho familiar) que influenciou o conceito de abjeção de Kristeva.
- O Grotesco na Arte e na Literatura, de Mikhail Bakhtin – Um estudo sobre o papel do grotesco e do abjeto na cultura popular e na literatura.
- A Sociedade Punitiva, de Michel Foucault – Um estudo sobre as formas como as sociedades lidam com a exclusão e o controle do que é considerado abjeto ou impuro.
- Frankenstein, de Mary Shelley – Uma obra literária que explora a criação do “monstro” abjeto e a relação entre identidade, criação e exclusão.