Deleuze e Guattari e a Filosofia da Multiplicidade
Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia 2, publicado em 1980 por Gilles Deleuze e Félix Guattari, é uma obra monumental e complexa que desafia as formas tradicionais de pensamento filosófico e político. Como continuação de O Anti-Édipo (1972), Mil Platôs expande o projeto de crítica ao capitalismo e à psicanálise tradicional, propondo uma filosofia baseada na multiplicidade, no devir e na criação de novos modos de existência. A obra é conhecida por sua estrutura não-linear e fragmentada, refletindo a ideia de que o pensamento e a vida não seguem uma única direção, mas se desenvolvem de maneira rizomática, conectando múltiplos pontos de maneira imprevisível.
O conceito de platô no título do livro refere-se a uma ideia extraída do antropólogo Gregory Bateson, que descreve o platô como um estado de intensidade contínua e não como um ponto culminante ou um clímax. Para Deleuze e Guattari, o platô é uma metáfora para a multiplicidade: em vez de pensarmos em termos de começo, meio e fim, ou de hierarquias lineares, devemos entender o pensamento, a vida e os processos sociais como fluxos e intensidades que se transformam continuamente. Cada platô no livro representa uma série de ideias ou temas que podem ser lidos de forma independente, mas que também se conectam entre si, criando uma rede de conceitos e problematizações.
1. Rizoma: Pensamento e Vida sem Hierarquias
Um dos conceitos mais importantes introduzidos em Mil Platôs é o rizoma, uma metáfora botânica que descreve plantas que se espalham de maneira subterrânea, formando uma rede de raízes sem um centro ou hierarquia clara. O rizoma é utilizado como uma alternativa ao pensamento “arborescente” ou hierárquico, que organiza o conhecimento de forma centralizada e linear. Deleuze e Guattari argumentam que o pensamento ocidental, especialmente na filosofia, nas ciências e na política, tem sido dominado por estruturas arborescentes, que centralizam o poder, a verdade e o conhecimento. Em oposição a isso, o rizoma é uma estrutura horizontal, aberta e descentralizada, onde não há um ponto de partida ou de chegada, e onde qualquer ponto pode ser conectado a qualquer outro.
Para os autores, o rizoma é uma maneira de entender o mundo e a vida como processos interconectados e não como entidades fixas ou unidades isoladas. Ele se aplica tanto ao pensamento quanto às práticas sociais, sugerindo que a vida e o pensamento devem ser vistos como redes de fluxos e intensidades que se interconectam de maneiras imprevisíveis. Esse conceito se aplica a diversas áreas, incluindo política, ecologia, arte e subjetividade. Ao pensar de maneira rizomática, Deleuze e Guattari propõem uma forma de viver e pensar que se opõe às estruturas hierárquicas e autoritárias, favorecendo a pluralidade e a criação.
2. Desterritorialização e Reterritorialização
Outro conceito central em Mil Platôs é o processo de desterritorialização e reterritorialização, que descreve a maneira como os sistemas sociais e subjetivos se deslocam e se reorganizam constantemente. A desterritorialização é o movimento pelo qual um elemento ou um sujeito é desconectado de seu contexto ou território original. No entanto, esse movimento é sempre seguido por uma reterritorialização, ou seja, a criação de novas formas de organização, de pertencimento e de significado. Esse processo é essencial tanto para o funcionamento do capitalismo quanto para a criação de novos modos de subjetividade e resistência.
Para Deleuze e Guattari, o capitalismo é um sistema que continuamente desterritorializa — ao dissolver fronteiras, mercados e tradições —, mas que também reterritorializa, ao criar novas formas de controle e de captura. O mesmo se aplica à subjetividade: os indivíduos são constantemente desterritorializados pelas forças do desejo e do inconsciente, mas também são reterritorializados pelas normas sociais, políticas e econômicas. O desafio, segundo os autores, é aprender a navegar por esses processos e encontrar maneiras de se reterritorializar de maneira criativa e resistente, em vez de serem capturados por sistemas de controle.
3. Devir: Tornar-se Outra Coisa
O conceito de devir (becoming) é central em Mil Platôs. Devir refere-se ao processo pelo qual algo se transforma continuamente, sem nunca alcançar um estado final ou estável. Para Deleuze e Guattari, a vida e a subjetividade são processos de devir, ou seja, de transformação constante. O devir não é sobre se tornar outra pessoa ou coisa, mas sobre o movimento perpétuo em direção a novas formas de existência. Devir-mulher, devir-animal, devir-criança, entre outros, são formas de explorar novos modos de ser, que rompem com as identidades fixas e as normatividades impostas pela sociedade.
O devir é uma força criativa e subversiva, pois desafia a fixidez das identidades e das hierarquias. No contexto político, o devir é um processo de transformação que abre possibilidades para novas formas de subjetividade e resistência. Em vez de buscar uma identidade estável ou uma posição fixa, Deleuze e Guattari propõem que devemos nos engajar no devir como um processo de transformação contínua, que nos permite escapar das formas de controle que nos capturam.
4. Corpo sem Órgãos
Um conceito central que é desenvolvido em Mil Platôs e também aparece em O Anti-Édipo é o corpo sem órgãos (CsO), uma ideia que desafia a concepção tradicional do corpo como uma estrutura organizada e funcional. O corpo sem órgãos é um corpo que não está organizado de acordo com funções hierárquicas, mas que é aberto a fluxos e intensidades de desejo. Para Deleuze e Guattari, o corpo sem órgãos é uma maneira de resistir à organização social e biológica que limita o desejo e a criatividade.
O conceito de corpo sem órgãos é uma metáfora para o desejo como uma força desestruturada, que se opõe às normas sociais e às formas de controle que tentam organizar e fixar o desejo em canais previsíveis, como o capitalismo ou a psicanálise. Ao se engajar com o corpo sem órgãos, os indivíduos podem experimentar novas formas de vida e de subjetividade que escapam às normas e aos limites impostos pela sociedade.
5. Micropolítica e Microrresistência
Deleuze e Guattari também desenvolvem em Mil Platôs a noção de micropolítica, que se refere às dinâmicas de poder que operam em níveis muito pequenos e difusos na vida cotidiana. Ao contrário das macropolíticas, que se concentram no poder do Estado ou das grandes instituições, a micropolítica analisa como o poder opera nas relações interpessoais, nos afetos, nas práticas sociais e nas subjetividades. Eles sugerem que a verdadeira resistência deve ocorrer nesses níveis micro, onde os fluxos de desejo e poder podem ser reconfigurados e redirecionados para criar novas formas de existência.
A micropolítica é uma forma de resistência que se opõe às formas tradicionais de política centralizada, favorecendo uma abordagem descentralizada e rizomática. Em vez de buscar a revolução como uma grande mudança no sistema de poder, Deleuze e Guattari propõem que a transformação começa em pequenas práticas de resistência e criação que desafiam as formas normativas de poder e subjetividade.
Impacto e Legado
Mil Platôs é uma obra desafiadora, tanto em seu estilo quanto em seu conteúdo. Sua estrutura fragmentada e rizomática reflete o próprio conteúdo da filosofia de Deleuze e Guattari, que busca romper com os modos tradicionais de pensamento e promover uma nova maneira de entender o mundo. O impacto dessa obra é vasto, influenciando campos como a filosofia, os estudos culturais, a teoria política, a arte contemporânea e a psicanálise.
Para quem deseja explorar mais sobre os conceitos desenvolvidos por Deleuze e Guattari em Mil Platôs, seguem cinco recomendações:
- O Anti-Édipo, de Gilles Deleuze e Félix Guattari – A primeira parte de Capitalismo e Esquizofrenia, que introduz muitos dos conceitos que são expandidos em Mil Platôs.
- Diferença e Repetição, de Gilles Deleuze – Um trabalho importante de Deleuze que explora a noção de diferença e como ela se opõe às formas tradicionais de identidade.
- A Máquina de Guerra, de Gilles Deleuze – Um ensaio que aprofunda a ideia de guerra e resistência como uma prática micropolítica.
- Anti-Memórias, de André Malraux – Um texto que dialoga com a ideia de rizoma e de histórias não-lineares.
- A Vida como Obra de Arte, de Michel Foucault – Uma reflexão sobre como a vida e a subjetividade podem ser transformadas em um processo contínuo de criação e resistência.